Por Lucas Seara
ALei nº 13.019/2014, a “Lei das Parcerias”, compõe o chamado Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC). Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as OSCs, caracterizado como mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, além de definir diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com as entidades¹.
Numa perspectiva mais geral, a lei determina os procedimentos que devem ser adotados nas parcerias, de maneira mais ampla e genérica. Daí vem a necessidade de que cada ente público adote uma regulamentação específica, com objetivo de garantir segurança jurídica nestas relações. Isso porque o regime precisa ser ajustado à capacidade, ao tamanho e as características de cada ente público, desde o nível federal, passando por estados e municípios.
Vejamos um exemplo prático relacionado ao art. 63 da Lei nº 13.019/2014, que trata das prestações de contas. No seu parágrafo primeiro, o dispositivo obriga a administração pública a fornecer “manuais específicos” às OSCs no momento da celebração das parcerias. Então vem a pergunta: qual o órgão responsável pela elaboração ou fornecimento dos tais manuais? Seria a Procuradoria ou órgãos de assessoramento jurídico? Seria uma secretaria específica? Pode ser terceirizado?
A lei geral, obviamente, não responde. Seria impossível prever as especificidades e organogramas de todos os entes públicos. Aliás, nem teria competência para tal, afinal estamos tratando, além do nível federal, de uma complexidade que envolve 27 unidades federativas e mais 5.570 municípios, todos autônomos, segundo o art. 18 da Constituição Federal. Portanto, é na regulamentação local que os detalhes são resolvidos e organizados, onde se definem as competências e prazos, por exemplo.
Em âmbito federal, o regulamento MROSC é o Decreto nº 8.726/2016², que traz as regras e procedimentos do regime jurídico das parcerias entre a administração pública federal e OSCs. Este decreto é fundamental por dois motivos: (i) normatiza as parcerias celebradas com a administração pública federal; (ii) serve como referência para os regulamentos adotados em nível subnacional, isto é, nos estados e municípios.
De acordo com o levantamento realizado pelo OSC LEGAL Instituto, em âmbito estadual temos 19 Estados e mais o Distrito Federal com regulamento específico. Já no nível municipal, temos 638 cidades com regulamento local. Todo esse levantamento está disponível para consulta e download gratuito no site www.osclegal.org.br
Aqui destacamos o mais novo regulamento estadual do MROSC, publicado em maio de 2023. Trata-se do Estado do Acre e do seu Decreto Estadual nº 11.238/2023³. A norma dispõe sobre a celebração de parcerias entre a Administração Pública do Estado do Acre e OSCs “para a plena aplicação da Lei Federal nº 13.019, de 31 julho de 2014, no âmbito da Administração Pública Direta e Indireta”.
Mas é importante destacar que a história não começa aqui.
Em fevereiro de 2018 o OSC LEGAL Instituto promoveu uma Roda de Conversa sobre o MROSC em Rio Branco, numa parceria com a Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA) e o Ministério Público do Acre (MP/AC), que cedeu o auditório para a atividade. Neste evento surgiu um pequeno Grupo de Trabalho que se propôs a iniciar uma mobilização no tema.
A atuação daquele Grupo de Trabalho local se tornava cada vez mais consistente. No mês de agosto do mesmo ano, o OSC LEGAL Instituto retornou à capita acreana, onde cumpriu uma forte agenda política no tema do MROSC: (i) realizou a oficina “MROSC e Promoção da Saúde”, com ênfase na discussão dos estatutos das associações; (ii) participou de Audiência Pública sobre a Minuta de Regulamentação do MROSC do Município de Rio Branco; (iii) participou de reuniões com a Mesa Diretora da Câmara de Vereadores da capital, com o Gabinete do Governo Estadual, com o Gabinete da Prefeitura de Rio Branco e com a Defensoria Pública Estadual, representada pela sua Defensora Geral e pela Ouvidora.
Em 2019 a Plataforma MROSC desembarca no Acre, promovendo uma Caravana MROSC. A atuação daquele Grupo de Trabalho local foi fundamental na integração com a Plataforma nacional. Com isso, a mobilização avança, formando-se a Plataforma MROSC Acre, que passa a encabeçar as iniciativas e discussões sobre o ambiente jurídico institucional para atuação das OSC no Estado, promovendo reuniões, capacitações, avaliação de documentos, etc.
A relação com os poderes públicos é marcada por inúmeras idas e vindas. Houve uma descontinuidade na relação com o município de Rio Branco. Por outro lado, ocorreu um avanço significativo no diálogo com o governo do Estado, consolidando a construção conjunta dos parâmetros do MROSC em nível estadual⁴.
Em 2022 o OSC LEGAL Instituto retornou ao estado, desta vez como convidado do “Seminário Consulta Pública do Marco Regulatório do Acre”. O evento marcou o lançamento da consulta pública sobre a minuta de regulamento estadual do MROSC. Após a consulta, amplamente participativa, em maio o regulamento foi publicado em Diário Oficial.
O Decreto Estadual nº 11.238/2023 é produto de uma construção, para a qual colaboraram diversos atores: ativistas, lideranças, dirigentes e técnicos de OSCs, gestores e servidores públicos, experts, dentre outros. Temos nossa contribuição nessa caminhada, haja vista que desde 2018 estamos na retaguarda da sociedade civil envolvida, desde o Grupo de Trabalho original.
Destacamos os resultados como positivos. Houve ampla participação social e espaço de diálogo com o executivo estadual. O texto é conciso e coerente com o regime estabelecido pela Lei nº 13.019/2014 e com os conceitos e soluções jurídicas constantes do Decreto Federal nº 8.726/2016. O percurso da elaboração buscou: por um lado, evitar os desacertos que aparecem em outros decretos similares; por outro, absorver as boas práticas e soluções acumuladas em diversas experiências exitosas por todo o País.
Alguns pontos interessantes do Decreto:
– O regulamento destaca o papel da Secretaria de Estado de Planejamento (SEPLAN) na elaboração de manuais, em conformidade com as normas de controle interno e externo, para orientar as OSCs e os agentes públicos (art. 3º);
– A OSCs deverão manter cadastro atualizado no Mapa das Organizações da Sociedade Civil, do IPEA (art. 6º);
– Prazo de até 90 dias para a Administração Pública cumprir as etapas do Procedimento de Manifestação de Interesse Social (PMIS), a partir do recebimento da proposta de abertura (art. 11);
– Possibilidade da Administração Pública convidar representantes das OSCs para compor as comissões de seleção, em especial aqueles indicados pelos conselhos das políticas setoriais específicas (art. 15);
– Vedada à Administração Pública exigir das OSCs como requisito para participar de chamamento público, celebrar parceria ou como critérios de seleção e julgamento: título de utilidade pública de quaisquer esferas federativas, qualificação como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), certificado de entidade beneficente de assistência social (CEBAS) ou qualquer outra titulação (art. 17);
– Em caso de atraso no repasse dos recursos, com aplicação de juros ou multa de mora referente a obrigações não adimplidas pelas OSCs, deverá a Administração Pública ajustar o orçamento da parceria para incluir os montantes correspondentes a estas despesas (art. 23);
– Incentivo à modalidade de atuação em rede (art. 24);
– Previsão de glosa dos valores relacionados apenas a metas descumpridas, sem envolver aqueles que foram regularmente cumpridos (art. 58).
Um dos grandes destaques é a criação do Conselho Estadual de Fomento e Colaboração (CONFOCO/AC), vinculado à Secretaria de Estado de Governo (SEGOV). Trata-se de órgão colegiado permanente e de constituição paritária, que atua como instância consultiva e propositiva na formulação, implementação, acompanhamento, monitoramento e avaliação da política pública de fomento, colaboração e cooperação técnica entre a Administração Pública e OSCs.
Serão 16 integrantes no Conselho, dentre representantes da gestão pública e da sociedade civil. Para a primeira composição, os representantes das OSCs serão indicados pela Plataforma MROSC Acre, a partir dos segmentos: direitos humanos; modelos alternativos de desenvolvimento no campo, na cidade e movimentos comunitários; assistência social; meio ambiente, comunidades indígenas e povos tradicionais; saúde; organizações religiosas; educação, cultura e esporte; empreendedorismo e pequenos negócios.
A regulamentação do MROSC no Estado do Acre é marcada pelo protagonismo da sociedade civil, que provocou os poderes públicos e participou ativamente dessa construção, inclusive apresentando a minuta do regulamento que viria se tornar o Decreto. Serve de referência e de inspiração para outras localidades.
Agora, se alguém por bricandeira nos pergunta se o Acre existe, a resposta vem fácil: “Sim, existe. É um lugar maravilhoso, de gente receptiva, calorosa e guerreira. A mobilização social é forte. São referência em regulamentação do MROSC”.
Viva o Acre!
— –
Lucas Seara. Advogado e Consultor. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (UFBA). Coordenador do OSC LEGAL Instituto.
1. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014 – Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999.
2. Decreto nº 8.726, de 27 de abril de 2016 – Regulamenta a Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, para dispor sobre regras e procedimentos do regime jurídico das parcerias celebradas entre a administração pública federal e as organizações da sociedade civil.
3. Decreto Estadual nº 11.238, de 02 de maio de 2023 – Dispõe sobre a celebração de parcerias entre a Administração Pública do Estado do Acre e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, termos de fomento ou acordos de cooperação, para a plena aplicação da Lei Federal nº 13.019, de 31 julho de 2014, no âmbito da Administração Pública Direta e Indireta.
4. Destaque-se o papel de Jessé Leitão, da SEGOV, e de Elisson Neves Reis, do Departamento de Convênio da Secretaria de Planejamento do Estado.