• sáb. jul 27th, 2024

Escritora Adna Souza, em breve lançará o livro “Seringueira Urbana: Contos & Recortes da Vereda”

ByEdnardo

jul 1, 2023

“Em meio aos rios sinuosos e à exuberante floresta do Acre, a escritora Adna Souza tece com maestria os fios da memória e nos presenteia com seu livro cativante, “Seringueira Urbana: Contos & Recortes da Vereda”. Nesta obra, ela nos transporta para a infância vivida entre rios e florestas, imersa na linguagem popular dos povos da região, o acreanês.

Adna Souza compartilha conosco sua própria história de vida e de sua família, em contos que retratam o cotidiano singelo e repleto de magia do povo acreano. Nascida e criada em meio à natureza exuberante, ela guarda na memória as lembranças de suas aventuras, brincadeiras e descobertas entre as águas e as árvores que a cercavam.

A linguagem popular dos povos da floresta, o acreanês, permeia cada página deste livro encantador. É por meio desse idioma rico em expressões idiomáticas e sonoridades únicas que Adna Souza nos conduz pela sua trajetória pessoal, compartilhando as histórias e experiências que moldaram sua infância e despertaram sua paixão pela escrita.

 

 

PEQUENO TRECHO DO LIVRO 

Ainda na década de 70, morávamos no seringal Novo Andirá, às margens do Rio Acre. Era um lugar paradisíaco e muito cobiçado por todos na região. Minha mãe já tinha 5 filhos, todos muito pequenos. Vivíamos uma vida, digamos, confortável para a época. Tínhamos bastante criação de galinha e porco, e um roçado com 10 mil covas de macaxeira, milho, arroz e feijão de corda. Havia também bastante borracha pronta no defumador. Nossa casa era de paxiubão e palhas de coqueiro Ouricuri. A vida seguia a passos lentos e ninguém se preocupava com nada. A única preocupação do meu pai era com a chegada do inverno, pois nesse período a produção da borracha diminuía bastante. Porém, em compensação, tínhamos a castanha, que também era uma excelente fonte de renda. Lembro que tínhamos um vizinho não muito perto, mais ou menos 3 horas de viagem até a casa dele. Era um Arigó natural do Piauí, casado com uma jovem de aproximadamente 28 anos, no máximo. Seu Geremias era o nome do vizinho. Seu Geremias era muito grande, tinha uns 2,50 de altura, tinha os olhos amarelos, usava uma faca estilo peixeira na cintura durante 24 horas e carregava a fama de matador. Segundo o povo falava, só lá no Piauí ele derrubou 10.  Pois bem, eu não sei o que deu na cabeça do pai que ele inventou de ser amigo do seu Geremias. Eu acho que era porque ele tinha medo do homem e pensou assim: já que não posso vencer o inimigo, vou me aliar a ele, né? A mulher do seu Geremias tinha 6 meninos, todos abaixo de 7 anos. Meu pai sempre cumprimentava seu Geremias e dizia assim: “Rapaz, vá lá em casa passar um domingo com a gente”. Seu Geremias respondia: “Vou sim, só estou esperando as coisas melhorarem, pois a Nêga quando não tá grávida, está parida. Mas pode ficar tranquilo que eu vou” E assim se passaram uns 3 anos nessa peleja, e seu Geremias não conseguia fazer essa viagem até nossa casa. O pai sempre dizia: “Tomara que o Geremias consiga vim aqui esse ano!”  Os dias foram passando, os meses e começou o inverno.  Parecia que aquele inverno seria diferente. Tudo indicava que passaríamos uma crise financeira, pois o invernou se mostrava ser rigoroso. Quando, é um belo dia sexta feira, umas 4 horas da tarde, ouvimos barulho pelo rumo do varadouro, ficamos atentos do que seria. Adivinhe? Seu Geremias e Cia   vinham, 6 meninos andando 2 na estopa e um no braço da Nêga, esposa do seu Geremias e 4 vira-latas muito magros. Era uma tarde chuvosa, e estávamos todos ao redor do fogão de lenha, esperando mãe fazer pão de milho.

Quando pai viu aquilo, os olhos até brilharam de tanta felicidade. Papai disse: “Que bom que VCS vieram! Sintam-se à vontade em minha casa”. Seu Geremias respondeu: “Muito obrigado! Cé não sabem a luta que foi para chegar aqui com essa ruma de meninos”. Mamãe disse: “Pode subir, todos. vamos descansar da viagem”. Subiram e já foram tomando café com pão de milho. E tudo parecia festa, todos felizes, inclusive meu pai. Mamãe já correu no galinheiro e pegou 4 galinhas gordas e preparou o jantar. E a conversar vai conversar vem, e nós já começamos a fazer caretas prós meninos. E assim foi até a hora de dormir. No sábado pela manhã, ao acordar,

Já vimos o seu Geremias na cozinha com uma lata de querosene no fogão, fazendo 18 litros de café e os meninos já estavam no roçado arrancando macaxeira e a mulher fritando 3 dúzias de ovos. Papai levantou meio atordoado, vendo aquela presepada, mas ficou calado, né? Afinal de contas, seu Geremias era hóspede, né? Enquanto pai tava ali chocado com aquela quantidade de café e ovos fritos, lá vem os meninos, cada um com um saco de macaxeira nas costas. Pareciam aqueles jumentos do sertão cearense.  Papai olhou, se benzeu e disse assim: Graças a Deus que isso é só até amanhã”.  Tomaram café com macaxeira e ovo, e ficaram por ali sempre arengando com a gente. Tinha um menino de uns 8 anos que o dedo era duro de tanto que dava côtôco. O outro, a língua já tinha ressecado de tanto viver pra fora dando língua.  E tinha um pequeno de uns 2 anos que mordia mais que piranhas. Aquilo parecia castigo.  Papai sempre elegante, mãe não deixaram a peteca cair, continuaram fazendo sala e batendo papo com os hóspedes. Quando deu 9 horas, cada um dos meninos pegou um terçado e sumiram pra dentro do bananal e do canavial. Cês me acreditam que, quando voltaram, até o bucho deles estavam azulados de tanto que comeram banana e chuparam cana?  Enquanto isso, a Nêga e mãe já estavam providenciando o almoço. Mamãe desceu, pegou 6 campeões no chiqueiro, matou, fez 10 quilos de arroz, mas uns 5 de feijão e uma lata de farinha de 18 litros pra fazer um pirãozinho, tudo isso pro almoço de sábado. Pois bem, lá pelas 12 horas o almoço estava pronto. Cada um pegou o que tinha de utensílios, porque os pratos só davam para os adultos, então pegamos tampa de panela, lata de leite, até folha de bananeira virou prato, mas a gente não ligava, o importante era ter comida e poder receber nossos ilustres hóspedes.  Durante o almoço teve um pequeno desentendimento entre mim e a filha do seu Geremias, porque eu queria comer o mucumbu da galinha e ela também queria, aí o bicho pegou. Eu peguei meu prato feito de folha de bananeira e sapequei no focinho dela, ela me deu um tapa no pé do ouvido que respondeu nos sóis e assim terminou nosso almoço de confraternização.  Lá pelas 14 horas, os meninos pegaram os terçados e sumiram de novo para roçado, já procurando a merenda, né? Enquanto isso, papai fazendo sala para o hóspede dele e fingindo que estava tudo bem, mas por dentro, ele estava quase dando uma pilora de tanta raiva desses meninos esfomeados do Caraí.  Mamãe chamou a Nêga pra começar providenciar a janta, nesse momento eu já percebi que mamãe não estava tão católica. Afinal de contas as galinhas estavam acabando, o roçado parecia que tinha passado um trator de esteira, tudo revirando. Mas mãe tinha classe e mesmo assim, preferiu manter, afinal de contas ela tinha certeza que domingo os hóspedes iriam embora. Como as galinhas estavam poucas, mãe resolveu matar uma porca enorme, dava mais ou menos uns 78 quilos. Cês me acreditam que essa porca só deu pra janta? Gente, os meninos roeram até os ossos, a banha fez uma farofa e acabou a porca. Mamãe, com cara de preocupação, se benzendo toda e clamando pelo sangue de Jesus Cristo. Enquanto isso, papai já fazia os planos pra domingo cedinho, seu Geremias partir com aquela ruma de gafanhotos da destruição.  Domingo cedinho, todos de pé já pegaram os terçados e foram arrancar os últimos pés de macaxeira que ainda restavam, e seu Geremias ficou fazendo aquela latinha de café.  Papai levantou feliz da vida, dando bom dia para todos com um largo sorriso. Coitado do pai, o pior estava por vir.  Tomamos café com macaxeira e jerimum e os ovos de patas, porque os de galinha já tinham acabado. Mamãe contato os minutos pra da tchau pros hóspedes, a esposa do seu Geremias se levantou toda descabelada e disse: “Geremias, eu amanheci com entojo, acho que estou prenha” Seu Geremias, olhando disse: “Misericórdia! Agora vem o bastião que a tempos esperávamos”. O dia passou, e os meninos arengando sem da trégua e comendo tudo como se não houvesse amanhã.  Cês acreditam que esses meninos tiravam as bananas verdes e socava na parede de paxiubão e diziam assim: “Deus da o amarelão e nos damos o amolegam”, passavam as bananas verde pra dentro. Resumindo, ninguém foi embora, a Muié do homem ficou entojada e não consegui andar. Aqui entre nós, eu acho que foi premeditado, viu? Enquanto isso, o rancho foi acabado, o roçado estava parecendo um campo de futebol, o bananal e canavial parecia que tinha sido saqueado pelo bando de guaxinim. Um dia ouvi pai dizendo assim pra mãe: “Maria, eu acho que o espírito do devorador entrou na nossa casa” mamãe disse: “só o espírito? Eu acho que entrou foi o próprio devorador, viu”. Papai estava aperreado, mas não sabia o que fazer. Afinal de contas, o seu Geremias era matador profissional, dormia com uma peixeira atravessada nas costas. Agora papai tinha que arrumar um jeito de mandá-los irem embora sem deixar o homem com raiva, né? Vai que esse homem fica com raiva de nós e resolve matar todos com aquela peixeira enorme.  Papai foi comentar com a mãe sobre essa preocupação dizendo que não estava aguentando e tinha medo de mandá-los embora e amanhecer com a boca cheia de formigas. Mamãe, muito inteligente, sempre a frente do tempo, antenada por demais, disse: “Home, eu tenho uma solução!” Papai disse: “Muié, não me diga! Pois então me apresenta essa solução?” Mamãe disse: “é simples, a gente finge estar dormindo e começa a falar das coisas que estão acabando. Sendo assim, ele ouve e vai embora, né?” Papai disse: “É mesmo! Pois vou fazer isso hoje”. Todos foram deitar, papai fingindo estar sonhando começou falar: “O arroz acabou, o feijão já era, o café só dá pra hoje, a macaxeira só ano que vem, a farinha tá na raspa, as galinhas só tem 2 que estão botando, portanto, quem estiver aqui, faça favor de ir andando”. Seu Geremias, ouvindo isso, deu um Pinote de dentro da rede. Levantou com aquela peixeira travessada nas costas olhou dentro dos sóis do pai e disse: “quem está dormindo está morto e quem ta morto não vê nada. Quando quiser dizer as coisas, diga quando estiver acordado”. Papai continuo fingindo estar dormindo e por isso ficou. Seu Geremias só foi embora quando a Muié dele pariu.  Nós ficamos mais pobre que jò, até as redes e os mosquiteiros se acabaram todos. Dica do dia: “nunca hóspede ninguém na sua casa que VC não possa mandar embora”..

 

Adna Souza

By Ednardo